terça-feira, 22 de setembro de 2009

Dor de dente.


"... Durante seis meses, talvez um ano, já não lembro, senti sua falta com a aflição de uma dor de dente. Tínhamos cometidos tantas intimidades no meio da noite, tínhamos dito tantas coisas secretas, e agora estávamos ali, nós dois, calados, no mesmo vagão do metrô. O que teria um sabor trágico quando eu era mais jovem - mas que agora parecia, sei lá, um fato normal da vida.
Nada fantástico, nem indecente, nem engraçado, apenas algo comum: o mistério de alguém entrando e saindo de nossa vida, afinal, desmistificado. (Essas pessoas acabam indo para algum lugar.)
E como, eu pensava (enquanto uma mulher de traços indianos descia na estação de Broadview), como poderia fazer Jesse entender isso, como poderia acelerar os próximos meses da vida dele, o próximo ano, talvez, até aquele ponto maravilhoso em que você acorda e não sente mais a falta dela (aquela dor de dente sumiu), mas simplesmente boceja, põe as mãos atrás da cabeça e pensa 'Preciso fazer uma cópia da chave de casa. É arriscado ter apenas uma chave,' ou algo parecido. Pensamentos lindamente banais e libertadores (será que eu fechei a janela do quarto?), que só aparecem quando a dor da queimadura já passou, e até a lembrança dela é tão remota que você não consegue entender por que aquilo durou tanto tempo, ou qual o sentido daquele sofrimento. (Olhe, o vizinho está plantando uma bétula nova!).
Como se a corrente que o prendia à âncora tivesse partido (você não consegue lembrar exatamente onde e quando, ou o que estava fazendo), você percebe de repente que seus pensamentos estão novamente sob controle; sua cama não parece mais vazia, mas simplesmente sua, sua para dormir, ler o jornal ou... Ei, o que eu estava mesmo planejando fazer hoje? Ah, fazer a cópia da chave, claro! Sim!
Como conduzir Jesse até esse ponto?
Então, olhando novamente à minha volta, no vagão do metrô (uma jovem devorava um pacote de batatas fritas), reparei que Paula tinha ido embora. Tinha descido em alguma estação. Ligeiramente surpreso, me dei conta que havia esquecido que ela estava lá, nós dois no mesmo vagão do metrô, atravessando túneis escuros, estávamos com a cabeça em outro lugar - estou certo que isso se aplicava a ela também -, a ponto de ficarmos indiferentes à presença um do outro, e isso numa questão de cinco minutos. Não é... Qual a palavra? Não é estranho? Imagino que esta seja a palavra adequada. Mas mesmo esse pensamento foi imediatamente esquecido. Enquanto eu atravessava a plataforma, carregando minha bicicleta, o metrô se afastou de mim, e eu reparei que a moça das batatas fritas usava aparelho nos dentes. Ela mastigava com a boca aberta."

(GILMOUR, David. O Clube Do Filme. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2009).